terça-feira, fevereiro 20

para o Bill 2



Querido Bill:

O que sinto por ti sempre foi uma relação de amor/ ódio, bem à maneira de todas as minhas grandes obsessões. Se fosses um livro serias um livro de Sebald. E eu gosto de Sebald.

Haviam dias em que te agradecia tudo o que sempre fizeste por mim. Dias em que tudo o que me dizias fazia sentido, mesmo que fosse para falar da tua ultima visita ao dentista, de novas tecnologias, de física ou matemática, de tipografia hebraica... Mas gostava disso, dos teus assuntos infindáveis para os quais ninguém tinha paciência. Eu às vezes tinha.

Tinha sempre esperança que tornasses a mudar os meus percursos e as minhas certezas... Fizeste-o algumas vezes e estou grata por isso.

Sempre gostei do teu sentido de humor, irónico e ácido. Gostava desse teu ar sabedor, experiente que contrastava com a minha inexperiência. Gostava quando me ensinavas coisas, quando me contavas histórias infindáveis. Às vezes até me esquecia que não gostava do teu cheiro (tu brincavas com isso e dizias que era melhor cheirar mal do que não ter cheiro). Sempre soubeste dizer as palavras certas nos momentos certos, eu, que não sou nada assim, sempre admirei essa capacidade nas pessoas.

Agora não sei bem quando te tornarei a ver, ou se alguma vez vou pensar de outra forma. A minha relação contigo sempre foi este vai e vem... e eu fui.

um beijinho grande

para o Bill 1

Querido Bill:

Este era o nome que secretamente te chamava porque me fazias lembrar o outro Bill, o Murray. Normalmente nunca gosto de chamar as pessoas pelos nomes, por isso invento sempre outros nomes para as pessoas, uns cómicos, outros maldosos– tu tiveste este entre muitos outros nomes que não vou nomear aqui.

Não gosto do teu ar cansado, sem paciência. Não gosto desse o teu mau cheiro, das oscilações de temperamento, da tua cobardia... Dizias muitas vezes que já pouco tinha a capacidade de te surpreender. E acho que, infelizmente, terias razão. Havia um tom amargurado quando falavas, como se já tivesses a certeza de tudo, como se mais nada houvesse para aprender. Não tinhas expectativas e as tuas certezas às vezes soavam a sentenças.
Eu tinha medo de me teres ditado uma sentença sem sequer me teres deixado ir a julgamento.

Outra coisa que me deixava sempre transtornada, é que nunca fui capaz de ter uma conversa sincera e honesta contigo. Nunca tive coragem para nada: para te interpelar, para te perguntar, para nada... Conseguias fazer com que ficasse calada nas tuas maiores insanidades. E foram algumas.

Terias concerteza, inúmeras justificações, eu também tenho as minhas. Mas isso não importa. A verdade é que sempre gostei muito de ti.

Um beijinho com saudades

segunda-feira, fevereiro 19

Cartão de visita


Anónimo. Diário de Lisboa, 1979

“O trabalho do cartão de visita, apesar de muito fácil, está também sujeito a regras técnicas como qualquer trabalho de grande vulto.”
MANUEL PEDRO, Guia profissional do tipógrafo, 1949

E o cartão de visita de uma nacionalidade? O cartão é mais prático. Não deixa ficar mal o sujeito, que em qualquer situação o tira da sua carteira de couro, ou marca estrangeira, e sugere a troca ao ilustre anónimo que acabara de conhecer. Agora já nos conhece­mos, tenho o seu contacto, para o que der e vier. Pequeno, sucinto, tem o essencial e não permite demasiadas conclusões. O cartão de visita de Portugal, foi de composição simples, mas complexa. Não. Perdão. O cartão de visita, tinha frente e verso.

“E isso imediatamente me levou à ideia de que o português é um ser complexo, do qual, para sermos simples, podemos dizer que é pelo menos duplo, aplicando a palavra, que em português tem má nota, duplicidade ao nível de muito bom. Podemos dizer que uma das virtudes do português é a duplicidade, que geralmente é apontada como um defeito em toda a gente, porque se relaciona com a palavra hipócrita. Coisa curiosa também, porque em grego hipócrita quer dizer apenas o actor. O actor que não era sinceramente ele, pois claro, que era um hipócrita. Assim o hipócrita é um actor, que é actor na vida e que tomou um sentido completamente diferente depois, quando a vida começou a ser alguma coisa mais atenta ao ganho, muito mais atenta à conquista de um objectivo do que ao desenvolvimento da personalidade.”
AGOSTINHO DA SILVA, Vida Conversável.

Para a frente do cartão de visita de Portugal, tinha a capital, Lisboa, no verso tinha a paisagem.
Cartão de visita é a primeira imagem, não se questiona (?) Cartão de visita é entregue a quem nos desconhece, é imagem projectada para o exterior. Era a exportação de um país? O cartão podia ser cartonado, impresso com as melhores técnicas e tintas, mas todo o cartão tem um verso. E o verso de Portugal era maior, em dimensão, tinha mais constituintes que a frente do mesmo. Maior, menos compreendido, menos acompanhado e menos esclarecido, por isso durante muito tempo não exigiu ser e constar à fren­te. Não exigiu a minúcia de trato de uma cabeça de capítulo. Digamos que o verso, foi matéria marginal, não representada, porque representada em ordem qualitativamente prejudicial. Aqui o cartão de visita era o objecto gráfico em lugar da materialização de valores e considerações.